Por Lilia Katri Moritz Schwarcz
Muitas vezes uma palavra serve apenas como “rótulo” e assim impede que se compreendam fenômenos culturais mais complexos. Pois foi sob o rótulo de “regionalistas” que uma série de artistas pernambucanos foram definidos e dessa forma caricaturados. A designação facultou identificá-los como folclóricos, primitivistas, naïfs e entendê-los como “menos”; nunca “mais”. Eduardo Dimitrov apresenta, na contracorrente, uma excelente e esclarecedora pesquisa sobre a trajetória de artistas que, em sua grande maioria, resolveram fazer carreira no Recife, como Murillo La Greca, Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, entre outros. Analisou também aqueles que ganharam sucesso nacionalmente, como Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, bem como apontou discriminações de gênero sofridas por Ladjane Bandeira; a única mulher do grupo. O resultado é um panorama consistente sobre esses artistas e acerca da especificidade da cena cultural de Recife, que continua a nos surpreender.
Por Sérgio Miceli
O livro de Eduardo Dimitrov trata da questão espinhosa das relações tripartites entre metrópoles estrangeiras, centros nacionais e províncias, por meio da análise de gerações de artistas plásticos pernambucanos entre 1930 e 1960. Esmiúça os meandros da dialética entre a hegemonia exercida pelo eixo Rio-São Paulo e as estratégias de legitimação acionadas na periferia, instada a reafirmar a primazia do universo regionalista de experiências sociais, de cultural material, de uma comunidade imaginada à revelia do cosmopolitismo em voga.
Sem menosprezar as disparidades de peso econômico e político entre regiões e capitais que incidem sobre o capital de influência, o estudo do caso pernambucano escancara os alicerces da geografia artística brasileira, cujo regime de trocas e de autoridade se delineia em meio a convulsões, a contrapelo da história da arte canônica.
A exemplo da interpretação magistral dos condicionantes de toda ordem que presidiram à disjunção entre centros e províncias na arte italiana, de Enrico Castelnuovo e Carlo Ginzburg, Dimitrov explora os limites e os feitos dos pintores e gravadores atuantes em Recife, sem pedágio aos prumos convencionais da crítica. Ciente dos limites em que se move a pulsão criativa na província, o autor investe na tessitura matizada dos liames envolvendo os protagonistas em luta no interior do campo artístico: faz valer os efeitos do intercâmbio direto entre artistas locais e mestres europeus, amiúde dispensando a mediação exercida nos redutos nacionais dominantes; explora com argúcia os procedimentos e as representações investidas no trabalho de infundir caracteres ´universais´ aos artefatos ´locais´; revela como se transmutam repertórios e técnicas ´populares´ em obras de arte lastreadas em sintaxes eruditas.
Os capítulos consagrados às trajetórias de Francisco Brennand e de Gilvan Samico desvelam, à saciedade, as condições sociais propícias ao assombro de uma atividade artística inovadora da parte de artistas distantes do stablishment da cultura nativa, em sintonia com técnicas arcaicas, com imaginário folclórico e iconografias mescladas. Seriam os equivalentes às figuras de Pontormo e Lotto no esquema italiano. Eis um trabalho primoroso em sociologia da arte, apoiado em documentação consistente, em diálogo com especialistas no assunto, capaz de visada receptiva aos repentes criativos na província, na contramão do senso comum acadêmico, devotado à apologia de movimentos, artistas e obras do panteão.
Em vez de se intimidar perante a doxa sobre as feições da geografia artística brasileira, a qual costuma enxergar províncias com veleidades – Pernambuco, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia – como arremedos a modelos de excelência em matéria de fatura artística, Dimitrov empreendeu um estudo de caso modelar. Escarafuncha os bastidores da atividade artística e resgata a trama de constrições na raiz de engenho, faísca e petulância na província nordestina.